Não foi para derrubar convenções que trouxemos Heloisa Vecchi na capa da 14ª edição da WIT, foi para dar as mãos a esse mundo deliciosamente melhor que se descortina ao nosso redor, um mundo de pluralidades e diferenças, um mundo de autoaceitação e de autocompaixão, que celebra a diversidade e valoriza a genuinidade. O mundo de Helô
Algumas cenas de nossa infância ficam gravadas na memória por motivos que muitas vezes desconhecemos. Não falo de momentos cruciais e memoráveis, mas daquelas imagens triviais que insistem em ser presentes. De todas as memórias que carrego da minha infância, uma delas é a vitrine de uma belíssima loja localizada na Av. XV de Novembro de Maringá. Eu não tinha 12 anos de vida, mas já caminhava sozinho por aquelas vias, com uma autonomia que dificilmente uma criança teria hoje em dia. Minha mãe trabalhava nessa mesma avenida, fazendo vestidos sob medida na Dida Su, uma boutique que existe ainda hoje.
Talvez o que tenha feito essa vitrine permanecer comigo foi a presença de um busto de manequim de costura, muito diferente dos manequins que minha mãe tinha no ateliê. Este era aramado, como uma escultura de ferro. Talvez foi a vontade que eu tinha todos os dias de entrar no estabelecimento que tenha feito a lembrança ficar viva, porque nunca tive coragem de me colocar dentro da loja. Se eu pudesse voltar no tempo, com minha atual consciência naquele corpinho de criança, com certeza eu entraria na loja e, mesmo que um vendedor me olhasse torcendo o nariz, diria “não se incomode comigo, estou aqui apenas para contemplar”. Mas, pensando bem, que graça teria estar criança e não ser criança? A loja passou e o tempo tratou de me colocar diante daquela que era a vida e a luz da vitrine dos meus sonhos: Heloisa Vecchi, uma mulher tal qual sua vitrine: exuberante, inconvencional, chocante, deslumbrante e nada, nada rasa. Uma mulher humana. Uma mulher intensa.
Antes de entrevistar Heloisa, nunca tive ocasião de vê-la em sua casa, quase sempre na Agave Casa, loja aberta em sociedade com seu filho Gabriel Vecchi. Porém, por ocasião desta matéria, fui recebido duas vezes em seu apartamento, um lar genuíno, que transpira uma sensação muito real de que ali tem objetos que pertencem a todas as vidas que habitam aquele teto, que não estão apenas para completar uma composição visual aceitável para as visitas, mas que estão ali porque pertencem àquele lugar.
Não precisei vencer o hall do elevador, onde um trio de vasos de cerâmica do Vale do Jequitinhonha nos dá as boas-vindas, para me sentir entrando na loja onde nunca pus os pés, agora com a compreensão de que, comercialmente falando, nem sempre é certo estar muito à frente de seu tempo. Somente Helô consegue compor uma gravura antiga com moldura rococó ao lado de uma tela abstrata e totalmente contemporânea. Somente ela consegue ambientar uma sala de jantar com vaso de porcelana chinesa da Dinastia Ming e cadeiras francesas de marchetaria do século XIX com arte popular brasileira e artigos da cultura africana, chamado por ela de arte espontânea, feita com matérias-primas rústicas e elaborada por pessoas que têm como principal recurso o tempo de suas vidas e a observação da natureza. “Você já imaginou quantos dias levou para esse artista anônimo tecer essa bolsa?”, perguntou Helô ao mostrar uma bolsinha de moedas finamente tramada à mão com fios de cobre, uma peça que briga por espaço em sua mesa de centro, onde encontrei uma urna peruana da américa pré-colombiana, uma caixa de couro garimpada em uma de suas viagens pelo leste europeu, vidros multicoloridos da artista plástica Elvira Schuartz, um par de talheres turcos de latão recentemente comprados na feirinha da Benedito Calixto em São Paulo, um presépio de barro nordestino, livros de diversos autores de formação humanista e um revisteiro com todas as edições da semana do jornal O Estado de São Paulo.
Sim, Heloisa é uma leitora voraz. Não fosse isso, duvido que teria tido paciência para concluir a faculdade de Direito, um curso feito na UEM (Universidade Estadual de Maringá) em uma época em que o curso de Arquitetura não existia na cidade. Helô chegou a pegar seu título na OAB, fazer uma pós–graduação em Fundamentos da Educação e a lecionar durante 2 anos na disciplina de Direito Comercial, mas não tardou para sua verdadeira vocação trazê-la de volta para o universo da decoração.
Diz ela que, quando pequena, por volta de 7 ou 8 anos de idade, sempre visitava uma tia em Porto Alegre que conservava caixas e caixas de revistas na garagem. Revistas de diversos gêneros: decoração, moda, celebridades, curiosidades… É muito fácil imaginar a pequena Helô deitada no chão, apoiada pelos cotovelos e folheando revistas por horas. De todo o conteúdo que passava debaixo de seus olhos, o que mais lhe chamava a atenção, segundo ela, eram temas que remetiam à casa, arranjos florais, móveis, objetos de decoração, tapetes… “Não tive uma orientação, meu olhar puxava naturalmente para estes temas, foi algo natural.”
Filha mais velha de Olivia e Luiz Poltronieri, Heloisa também herdou dos pais o gosto pelo refinado, que em sua vida não se traduz em sofisticação, mas em genuinidade que hora se apresenta sim sofisticado, hora se apresenta apenas com autenticidade. E não é chic ser autêntico? Sua mãe era muito sensível à boa mesa e a coisas que traziam prazer particular, como bons cremes e boas roupas. Aliás, ano passado sua filha Isadora usou o vestido de casamento de Dona Olivia, sua vó, em um casamento intimista celebrado em Porto Belo, litoral de Santa Catarina. Helô descreve seu pai como um homem alegre, sedutor e de alma sofisticada, um homem que se aquecia no inverno com um cálice de conhaque, que apreciava o cheiro do fumo antes de acender o cachimbo, que amava carne de caça, principalmente codornas e perdizes.
Helô tinha 4 anos de idade quando saiu do Rio Grande do Sul e desembarcou em Maringá com seus pais. Eles encontraram uma Maringá pioneira, e recomeçaram suas vidas na época áurea do café, trabalharam muito e tiveram sucesso.
O comércio foi entrando em sua vida aos poucos, de forma natural. Tudo começou em uma viagem à praia, feita com Nei Vecchi e seus filhos. Já voltando do litoral paranaense, passando por Curitiba, Helô foi atraída por uma loja de tapetes persas. “Escuta, você não quer fazer uma exposição desses tapetes em Maringá?”, foi a pergunta feita ao proprietário da loja. Para sua surpresa, o sujeito topou, e pouco tempo depois Helô promoveu essa exposição no Hotel Deville, com direito a convites e detalhes de uma boa recepção que só me resta imaginar. Era 21 de março de 1990, exatamente no dia em que o governo Collor de Mello congelou todo o dinheiro em poupança. Anunciada a tragédia comercial dos anos seguintes (ainda assim foram vendidos alguns tapetes naquela noite), o lojista de Curitiba propôs a Heloisa continuar com os tapetes e vendê-los segundo seu tempo e disponibilidade. Sem uma loja física, os tapetes foram todos para sua casa. Depois dos tapetes vieram objetos de decoração e diversos artigos garimpados com sua maravilhosa curadoria. A loja surgiu quando Nei percebeu que sua casa estava na iminência de se transformar em um mercado de pulgas, brinca Helô.
Já naquela época sua loja misturava artigos extremamente sofisticados com peças da cultura popular, em um tempo em que as pessoas assimilavam essa cultura mais facilmente, por ser um movimento amplamente difundido no período do tropicalismo, que pregava o resgate às origens e raízes. “Eu sempre dei muito valor ao homem primitivo, muitas pessoas não fazem a menor ideia de que debaixo da linha do equador existe um Brasil, uma África, uma América Latina que é riquíssima apesar de todas as mazelas econômicas, vivemos em um paraíso escondido, de cultura e encantamento, de raiz absoluta, de terras, de cheiros e de sons extraordinários”.
Na década de 1970 esse universo paralelo começou a ganhar holofotes por meio do movimento hippie. Foi um despertar geral das pessoas para suas origens, para as roupas de algodão, para os orgânicos, para objetos de barro, de madeira e de palha, até mesmo a cultura indiana foi iconizada, e junto dela o sexo, drogas e rock ‘n’ roll. “Nesse período de revoluções globais a arte popular brasileira também ganhou espaço, e teve como uma de suas principais vozes uma arquiteta de Recife chamada Janete Costa.” Nessa mesma época Helô conheceu um de seus grandes mestres, Roberto Ruggiero, a pessoa que a apresentou ao conceito de arte espontânea, um grande conhecedor da arte Latino Americana, dono e curador da Galeria Brasiliana, em São Paulo.
Há 20 anos, naquela mesma loja que abriu este artigo, Heloisa levou para Maringá peças de artistas e designers como Carlos Motta, Aristeu Pires, Zanine Caldas, móveis mineiros de época e muita arte espontânea, de uma forma que, talvez, o mercado local não estava preparado para assimilar. Hoje em dia a arte pura e genuína está muito mais fácil de ser não apenas absorvida, mas desejada. As pessoas passaram a buscar peças assinadas por artistas como Sergio Rodrigues, Jean Gillon, e jovens talentos como Roberta Banqueri e Guilherme Wentz.
No século XXI não podemos jamais ignorar as influências das redes sociais, não só no universo da decoração, mas na cultura como um todo. Helô explica que esse tipo de mídia, além de ter democratizado muitas vozes, trouxe também a tendência das pessoas iconizarem personagens, e imitar o estilo de vida desses formadores de opinião, criando tendências que se tornam rapidamente replicadas em milhares de casas. “Eu acho que é muito bacana todas as pessoas terem acesso a esses produtos, mas é ainda mais incrível quando alguém consegue em sua vida ou sua profissão fazer um trabalho autoral, que denotam um conteúdo e pensamento únicos”.
É por isso que as inspirações de Heloisa Vecchi vão muito além do que dita o mercado da decoração. Ela mesma cita a irreverência dos estilistas Alexander McQueen e Vivienne Westwood para descrever sua curadoria e arte que, a exemplo deles, sempre foram desafiadores. “Eu sempre digo que benditos são os malditos, porque eles fazem a diferença no mundo, são pessoas que vivem um enfrentamento interno com seus deuses e suas bruxas, que são sacudidas e oferecem ao mundo o seu melhor na forma de talento, e nem sempre conseguem fazer tudo isso com sanidade, do contrário seriam só mais um”.
Ouso perguntar para Heloisa, uma pessoa irreversivelmente otimista, o que afinal está faltando no mundo. A resposta foi taxativa: leveza. Nas palavras dela: “o maior desafio da humanidade é a leveza, perceber que as coisas materiais, mesmo trazendo muito prazer, não são mais importantes que o sentimento”. Ela cita Eduardo Giannetti, autor de Felicidade, para descrever que ao longo dos anos a felicidade passou a ser transformada em coisas absolutamente materiais. “O ter não te completa?”, pergunto. “É claro que o ter me dá prazer, mas pelo menos tenho a consciência de que é um prazer muito efêmero, assim que você compra o objeto desejado, aparecem outras ofertas de felicidade, criando desejos em um ciclo que não acaba”.
Quem diria que Heloisa Vecchi é uma mulher de origem e hábitos totalmente heterogêneos. Que cedeu essa entrevista bebendo espumante, mas que também ama estar em boa companhia, que sabe apreciar o mo-men-to seja em um restaurante indicado pelo Guia Michelin ou comendo um pastel na feira livre. Uma mulher que ama música brasileira, e que realmente só se soltou e curtiu seu momento de garota da capa quando, no estúdio de Eliandro Correa, tocou Ovelha Negra de Rita Lee. Viva Heloisa, viva!
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